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Miguel Torga

Miguel Torga, escritor maior do século XX, pseudónimo literário de Adolfo Correia da Rocha. Transmontano de berço, de têmpera, de corpo e de alma, coberto de uma crosta de naturalismo. Montanhês de temperamento independente, rebelde e nunca conformado, com os pés na terra e o pensamento no país e no mundo. Trás-os-Montes alimentam a sua vida e as suas palavras. Homem de terra firme que nunca renega as raízes humildes ligadas ao seu chão, a São Martinho de Anta, tal qual a urze, essa torga que o batiza como homem da escrita. Escritor e médico, a mão que escreve é a mão que prescreve.

Fotografia de Miguel Torga vestido com o traje de estudante
Fotografia de Miguel Torga com paisagem duriense
Fotografia de Miguel Torga, a usar uma boina, de braços cruzados.

Vida

Nasce Adolfo Correia da Rocha às 11 da manhã de 12 de agosto de 1907 em S. Martinho de Anta, concelho de Sabrosa, distrito de Vila Real, entre a terra quente do xisto do Douro e a terra fria do granito do nordeste transmontano. Aldeia primitiva, torrão nativo, Agarez como batiza numa projeção mítica da terra natal. O húmus que o alimenta e que o nutre. O chão das suas raízes, de onde vê o país e o mundo nos seus olhos verde-musgo.

Cresce numa família pobre, honrada, determinada a rasgar-lhe horizontes. O pai Francisco Correia da Rocha, louro, de olho azul, é o suporte, a estaca vital. A mãe Maria da Conceição de Barros, olhos quase verdes, olhos-azeitona, voz doce, o calor do regaço sentimental. Faz a quarta classe com distinção. Criado de servir no Porto, um ano no Seminário de Lamego, a certeza de que não queria ser padre. Aos 13 anos parte para o Brasil para trabalhar na fazenda do tio. Regressa cinco anos depois, faz o liceu em três anos, forma-se médico na Universidade de Coimbra com média de 15 valores. Dá consultas em Sendim, Miranda do Douro, em Leiria e, por fim, em Coimbra. A mão que escreve é a mão que prescreve.

Em 1934, torna-se Miguel Torga, seu nome literário. Miguel em homenagem a Cervantes e Unamuno. Torga é torga, planta brava de montanha, urze de raiz rija. Médico e poeta no osso, na carne, na pele, na alma. Viaja entre Portugal e Itália, por uma Espanha em ferida pela Guerra Civil. O livro O Quarto Dia de A Criação do Mundo é apreendido, o escritor é interrogado pela PIDE, fica três meses preso na cadeia de Aljube. Voz incómoda e nunca acomodada, rebelde no sangue e na carne.

É um poeta insatisfeito, por vezes, escreve em duplicado, à máquina com papel químico. E reescreve. Emenda à mão, corta tiras de papel que cola em cima das folhas. O seu mundo é uma torrente de emoções, volições, paixões, inteleções. Os seus dias são crónica, romance, memorial, testamento. Médico dedicado, especialista em ouvidos, nariz e garganta, otorrinolaringologista durante mais de 50 anos. Viaja pelo mundo e descreve-o nas suas profundezas. Discute dogmas, desafia o senso comum, admite a rebeldia. É quem é. Tal e qual como é. É caçador também, esquerdino na arma, rijo de pernas, atira a galinholas, perdizes, narcejas por serras e montes. É um dos mais influentes poetas e escritores portugueses, autor de uma vasta produção literária. Laureado com diversos prémios literários nacionais e internacionais, recebe o primeiro Prémio Camões em 1989, é proposto duas vezes ao Prémio Nobel da Literatura. Durante muitos anos, é editor dos seus próprios livros.

Morre a 17 de janeiro de 1995. É enterrado no cemitério de S. Martinho de Anta, em campa rasa, com uma torga por perto, como pediu.

Sim, a morte são os dias cheios. Para os poetas, cheios de poesia, que é a eternidade neste mundo.
Carta a Fernão de Magalhães Gonçalves
Coimbra, 15 de agosto de 1987

Autoretrato

Nasce Adolfo Correia da Rocha às 11 da manhã de 12 de agosto de 1907 em S. Martinho de Anta, concelho de Sabrosa, distrito de Vila Real, entre a terra quente do xisto do Douro e a terra fria do granito do nordeste transmontano. Aldeia primitiva, torrão nativo, Agarez como batiza numa projeção mítica da terra natal. O húmus que o alimenta e que o nutre. O chão das suas raízes, de onde vê o país e o mundo nos seus olhos verde-musgo.

Cresce numa família pobre, honrada, determinada a rasgar-lhe horizontes. O pai Francisco Correia da Rocha, louro, de olho azul, é o suporte, a estaca vital. A mãe Maria da Conceição de Barros, olhos quase verdes, olhos-azeitona, voz doce, o calor do regaço sentimental. Faz a quarta classe com distinção. Criado de servir no Porto, um ano no Seminário de Lamego, a certeza de que não queria ser padre. Aos 13 anos parte para o Brasil para trabalhar na fazenda do tio. Regressa cinco anos depois, faz o liceu em três anos, forma-se médico na Universidade de Coimbra com média de 15 valores. Dá consultas em Sendim, Miranda do Douro, em Leiria e, por fim, em Coimbra. A mão que escreve é a mão que prescreve.

Fotografia de Miguel Torga, sentado a escrever.
Fotografia de Miguel Torga

Cronologia na primeira pessoa

A infância. “Deixava os fundilhos das calças nos escorregadoiros da serra, punha a camisa em fiapos a varar silveiredos atrás dum lagarto, não havia joelheiras que resistissem às explorações que fazia nas minas secas, à procura dos texugos que se metiam dentro.”

Criado de servir no Porto.“Era porteiro. Mas regava também o jardim, ia aos recados, servia de burro aos meninos mais novos do que eu, limpava o pó, polia os metais da escadaria nobre com pomada Coração. Andava de casaco branco, dormia num cubículo, de campainha à cabeceira, e ganhava quinze tostões por mês.”

Partida para o Brasil, de barco, no outono. Tinha 13 anos. Atracou no outro lado do Atlântico numa segunda-feira cheia de sol. “Levava uma mala abarrotada. Quatro lençóis de pano cru, cinco travesseiros, ucobertor de flanela, uma colcha, uma roupa de casimira, duas camisas, duas ceroulas, cinco toalhas, seis garrafas de Roncão velho e uma dúzia de salpicões.”

A escrita na juventude. “Ultimamente fazia versos a torto e a direito. Por dá cá aquela palha, saía soneto, ode, ou coisa sem nome, mas rimada. Enchia cadernos de quadras, onde o amor exigia dor, saudade bondade, estrela bela, lua tua, pálida crisálida, etc.”

Regresso a Portugal. “Foi à tardinha que a âncora saiu do lodo do cais e rolou pelo casco acima. Devagar, a proa do barco começou a mover-se e o Brasil dos meus sofrimentos a distanciar-se. Primeiro, o maciço duro da cidade; a seguir, a fita redonda das avenidas marginais; depois, o Pão de Açúcar; finalmente, a linha de costa, cada vez mais esfumada. Grandes e pequenos acidentes de um todo que eu cobrira de lágrimas infantis. De lágrimas que não tinha agora para chorar…”

A literatura. “Vivíamos em desafio constante, sem transigências, sem complacências, seguros da nossa missão renovadora. Poucos e unidos, desafiávamos Portugal inteiro, que continuava cego na sua rotina, no seu conformismo, na sua retórica. Todas as experiências gráficas e literárias se faziam, todas as tentativas se ousavam.”

O amor. “O amor batera finalmente à porta, depois de mil simulacros e negaças. Todas as aparências anteriores deixaram de ter qualquer significação diante da presente evidência. Nenhum abalo emotivo experimentado até ali nesse capítulo se podia comparar ao alvoroço que sentia agora antes de cada encontro.”

Médico e seus doentes. “Ficava sempre em pânico diante daquelas criaturas, ainda há pouco inteiramente desconhecidas, ali, indefesas, a exibirem confiadas as misérias do corpo e da alma.”

Médico-poeta-escritor. “Cumprida a obrigação profissional, a devoção criadora. Arrumava o bisturi e pegava na caneta. E tinha a impressão de que continuava a abrir no papel os mesmos fleimões de há pouco. As páginas sangravam como feridas rasgadas, e os poemas pareciam uivos.”

Médico em Coimbra, dava consultas na Casa dos Pescadores de Buarcos, na Figueira da Foz, duas vezes por semana. “Morava num velho casinhoto alcandorado numa ravina sobranceira ao rio. Em baixo, as ínsuas verdejavam cobertas de laranjais. Barcas serranas, carregadas de lenha ou de trouxas de roupa lavada, desciam de Penacova. Aos domingos e dias santos, grupos batistas cantavam hinos no areal e mergulhavam devotamente os neófitos na limpidez da corrente, que refletia o casario erguido em presépio pelas colinas.”

O caçador. “O homem primitivo que nunca se resignara dentro de mim só vinha à tona em toda a sua plenitude de cartucheira à cinta. O ato venatório era para os meus sentidos o regresso à pureza original. Desde a roupa que vestia, delida com um velho paramento e afeiçoada aos movimentos do corpo como uma segunda epiderme, à frugalidade sã da merenda, sempre igual, ao vinho bebido excecionalmente, tudo fazia parte de uma secreta comunicação com a sacralidade da natureza.”

Viagem à Europa. A Guerra Civil de Espanha. “Todos víamos, alanceados, que, mais terrível que a guerra, eram os escombros dela, os dejetos da heroicidade inútil, a esterilidade satânica do seu rastro. O que ficara para trás, embora aterrador, tinha vida ainda, e, por isso, o instinto de conservação podia alimentar pelo menos a esperança de fugir. Agora, um desânimo total invadia o espírito, secava a energia do desespero na raiz.”

Preso pela PIDE, horas sentado, regelado, a pensar. Sepultado vivo. “Enjaulado como uma fera, privado dos mais elementares meios de higiene, a ouvir e a cheirar os próprios rumores e odores, sem voz, sem direitos, sem ação, condenado a uma existência meramente vegetativa, funcional, de alambique, a comida a entrar e a sair, o sono e a vigília a alternar na repetição pendular do mesmo absurdo.”

Ariane

Ariane é um navio.
Tem mastros, velas e bandeiras à proa,
E chegou num dia branco, frio,
A este rio Tejo de Lisboa.

Carregado de Sonho, fundeou
Dentro da claridade destas grades…
Cisne de todos, que se foi, voltou
Só para os olhos de quem tem saudades…

Foram duas fragatas ver quem era
Um tal milagre assim: era um navio
Que se balança ali à minha espera
Entre gaivotas que se dão no rio.

Mas eu é que não pude ainda por meus passos
Sair desta prisão em corpo inteiro,
E levantar a âncora, e cair nos braços
De Ariane, o veleiro.

Cadeia do Aljube, Lisboa, 1 de janeiro de 1940.

Fotografia de Miguel Torga, junto de rochas

O regime, a ditadura.A voz inconformada. “Quem não acertava o passo pelo chouto do rebanho, ou apodrecia num calabouço ou morria de fome. A nação inteira era agora uma tumba de silêncio e abulia. Nos campos, nas fábricas, nas escolas e nas repartições, o perfil duro do ditador parecia escutar a voz das próprias consciências. E as consciências calavam-se no mais fundo das funduras, temerosas de qualquer expressão reveladora. Nenhum lugar, do mais alto ao mais rasteiro, era preenchido sem o aval da polícia política.”

25 de Abril. “Um simples canhão apontado bastou para que a fortaleza se desmoronasse. Surpreendida pelo milagre, a alma nacional explodiu de alegria. De norte a sul, multidões transfiguradas enchiam as ruas num impulso de incontida esperança renovada. Parecia um sonho! (…) Bandeiras de todas as cores sorriam desfraldadas na atmosfera límpida de Abril. (…) A pátria readquiria finalmente a voz e a dignidade.”

Viagem a África, à procura de um modo português de estar em África. Luanda, Angola, “(…) a cidade lembrava uma Sodoma de irresponsabilidade cercada de maldição.” Ilha de Moçambique, oásis de esperança, todas as combinações e reações humanas levadas a cabo no pequeno recife.

O seu chão. “O apego das raízes ao chão nativo? Depois de tantas andanças, de tanto sofrimento, de tanto estudo, o cordão umbilical continuava ligado à matriz. Tinha, realmente, uma paisagem, um meio, um sítio geográfico vital gravado nos cromossomas! O corpo podia correr todos os caminhos do mundo, e o espírito voar em todas as direções. Aonde chegassem denunciariam sempre a marca de origem, a singularidade inconfundível, espécie de sabor à terra de proveniência, como o dos frutos.”

A velhice. “Temia a decadência, não temia a morte. Deixar de escrever, deixar de amar, deixar de caçar é que seria a suprema desgraça.”

No fim da vida, o homem que era. “O homem, que por fora parecia um monólito de certezas, por dentro era um amálgama de dúvidas. Sedento do absoluto, só conhecera o gosto amargo do relativo. Profundamente religioso, nunca pudera dobrar os joelhos diante de nenhum altar. Medularmente afetivo, criara, sem saber porquê, ao lado de algumas amizades firmes, um sem-número de inimigos encarniçados. De uma timidez doentia, passara os dias a compensá-la com atos violentos. Supersticioso e inseguro em cada passo, movimentara-me no campo das realidades como um fantasma voluntarioso.”