Casa
Miguel Torga

1930

5 março 1934

Como a gente se perde! A linguagem que o meu sangue entende - é esta. A comida que o meu estomago deseja - é esta. O chão que os meus pés sabem pisar - é este. E, contudo, eu não sou já daqui. Pareço uma destas árvores que se transplantam, que têm má saúde no país novo, mas que morrem se voltam à terra natal.

Diário I
30 abril 1937

Bucólica
A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
À espera do movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;

De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;

De poeira
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu Pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.

Diário I
17 abril 1938

Este Trás-os-Montes da minha alma! Atravessa-se o Marão, e entra-se logo no paraíso! (…)

Diário I
22 abril 1938

Volto amanhã. Uma semana. É pouco. Precisava de bem mais. Mas assim mesmo já levo terra nas unhas que dava para a Central inteira. Preciso disto. Necessito de vir enxertar de quando em quando a debilidade nesta cepa. (…)

Diário I
25 dezembro 1938

O dia foram as camélias e as trepadeiras que plantei com meu Pai. Poucas vezes, nestes trinta anos, me senti tão uno, tão certo, como junto daqueles setenta a plantar flores. Porque meu Pai, assim magro e assim debruçado sobre a terra, enche de paz e de confiança a inquietação mais desvairada.

Diário I
1 janeiro 1939

Fui à Vila encontrar-me com ela no Jardim da Carreira. O busto de Camilo, sobressaltado, olhou-me tragicamente da cabeça aos pés. Sosseguei-o: - Não, não temos Ana Plácido, camarada!

Diário I

1940

21 setembro 1940

Aqui estou. Vim mostrar a mulher aos velhos, à Senhora da Azinheira e ao negrilho. Gostaram todos.

Diário I
22 setembro 1940

O dia foi em Guiães, a caçar e a vindimar de manhã, e a ler de tarde versos num cemitério que só visto. Se um dia vier a talho de foice, hei-de escrever uma página sobre estas necrópoles transmontanas, de granito, aninhadas no cimo de uma serra, com ar de quem lava as mãos disto da vida e da morte.

Diário I
2 outubro 1940

Fui mostrar-lhe a Vila. Mas fui mostrar-lha como os meus avós a mostraram às mulheres deles - a pé. Foram só seis léguas…

Diário I
Natal x4 dias 1940

Dia Santo
Dia de Sol e de Natal;
Andam guerras no mundo e dói-me a vista;
Mas, com Deus no Marão sem neve, não há mal
Que resista.

De mais, fora do tempo, este latim
Que o padre Bento sabe, basta
Para me transcender a mim
E a quantas más notícias o correio arrasta.

Diário I

1950

29 outubro 1955

O solar da família, térreo, de telha-vã, encimado pelo seu brasão de armas esquartelado, com enxadões em todos os campos… Foi desta realidade que parti, e é a esta realidade que regresso sempre, por mais voltas que dê nos caminhos da vida. É uma certeza de marco com testemunhas, que nunca me deixa desorientado quando quero avivar as estremas da alma. Basta escavar um pouco a crosta da aparência, e aí estou eu na matriz, confrontado. (…)

Diário VIII
1 novembro 1955

Vim buscar o velho, mas volto sem ele. Não tenho coragem de o arrancar da cama e levá-lo por aí abaixo, como a não tive de erguer a filha do berço e trazê-la por aí acima. (…) E aqui estou eu, crucificado entre o desânimo e a esperança, com o passado e o futuro em cada mão, sem os poder atar.

Diário VIII
25 março 1956

Apresentação da neta ao avô. O melhor viático que eu podia trazer ao velho para a viagem do além, que está prestes a fazer. Pus-lhe nos braços secos a vergôntea de vida tenra, e a paz que a minha própria existência nunca lhe deu nimbou-o como um resplendor. (…) A maratona da vida tinha agora três estafetas: um cansado, que de todo perdera a corrida; outro a cansar, que certamente ia perdê-la também; e outro ainda, inteiramente folgado, que podia muito bem chegar ao fim vencedor.

Diário VIII
27 setembro 1956

Aqui estou a enraizar a filha, a mergulhá-la na terra como meu Pai fazia às pernadas tenras dum rododendro de estimação. Quero dela também o prolongamento da rubra vitalidade de alguns cromossomas honrados e obstinados.

Diário VIII

1960

11 abril 1960

A casa nativa actualizada, com todas as sombras do passado pintadas de branco. A natureza humana é assim. A mais afectuosa e fiel acaba sempre por caiar as paredes fuliginosas da memória. Não esquece os mortos; deixa, simplesmente, de os lembrar.

Diário IX
3 outubro 1960

Rodo trezentos e sessenta graus sobre o eixo. E fica-me nos olhos a imagem do que sou: a encarnação humana destas serras inamovíveis, secas e desesperadas, que esperam pelas tempestades do Inverno e pelo sol da Primavera com o mesmo inquebrantável estoicismo.

Diário IX
30 dezembro 1960

Borralho
Vou aquecendo os sonhos à lareira,
Sem reparar nas cinzas do brasido.
Ou olho-as distraído,
Na baça inconsciência
De que são a verónica da morte.
Sentado na cadeira habitual,
Diligência irreal
Que atravessa, morosa, a noite fria,
De mim próprio alheado,
Dou concreto calor à fantasia
Como se o lume fosse imaginado.

Diário IX
29 março 1961

As alucinações que podem advir de uma brusca descompressão psicológica! Depois de alguns dias de total isolamento aqui, esta manhã, na Vila, tive a sensação de que estava em Paris.

Diário IX
27 dezembro 1961

Com tantos juízos no pêlo - e frescos, quase todos! -, chego ao fim da vida na completa ignorância do único que verdadeiramente me interessava conhecer: o desta gente. Que pensará ela do trangalhadanças que atravessa o largo da povoação duas ou três vezes por ano de espingarda ao ombro, e desaparece misteriosamente nos montes, sempre com as mesmas calças de bombazina, a mesma boina vasca, e a mesma cara escaveirada? Saberá que, obrigado pela força do destino a emigrar para outros mundos, aqui deixei a alma, que venho de vez em quando encarnar? (…)

Diário IX
18 abril 1962

Instrução primária
Não saibas: imagina…
Deixa falar o mestre, e devaneia…
A velhice é que sabe, e apenas sabe
Que o mar não cabe
Na poça que a inocência abre na areia.

Sonha!
Inventa um alfabeto
De ilusões…
Um á-bê-cê secreto
Que soletres à margem das lições…

Voa pela janela
De encontro a qualquer sol que te sorria!
Asas? Não são precisas:
Vais ao colo das brisas,
Aias da fantasia…

Diário IX
23 dezembro 1964

Cá estamos os dois, o Zé Ferreiro e eu, à bigorna. Ele a malhar no ferro, e eu nas palavras. Mas na minha forja há mais marteladas e menos chispas…

Diário X
12 abril 1965

(…) Tudo o que sou claramente não é daqui. Mas tudo o que sou obscuramente pertence a este chão. A minha vida é uma corda de viola esticada entre dois mundos. No outro, oiço-lhe a música; neste, sinto-lhe as vibrações.

Diário X
16 abril 1967

Seja qual for a estação do ano e a direcção seguida, antes de sair de casa já sei que alimento os olhos vão ter pelo caminho. Neve no Larouco, rododendros cor de fogo em Magueija, soutos a pingar castanhas em Carrazedo de Montenegro. Mas é sempre com o mesmo alvoroço que parto, e com o mesmo deslumbramento que regresso. Para o verdadeiro crente, a missa, que nunca varia, nunca se repete. E a minha missa é esta. Uma íntima e diária comunhão com a natureza, nos transes da sua perpétua agonia, morte e ressurreição.

Diário X
16 agosto 1966

Não costumo. Mas hoje, como estava de amores, forneci o texto e dei a significação. Depois de mostrar os recantos da terra e os largos horizontes que a circundam, acrescentei: - S. Martinho é um reduto ideal. Uma fortaleza a que me abrigo duas ou três vezes por ano, e onde me sinto inexpugnável todos os dias.

Diário X
12 agosto 1968

Malhada de centeio na eira ao lado, que pertence à família, onde há sessenta anos minha Mãe largou à pressa a coanheira, para vir de rastos, já com o saco das águas roto e crucificada de dores, parir-me debaixo de telhas. Enquanto oiço o baque surdo dos manguais a esbagoar as paveias, vou filosofando sobre esse longínquo nascimento, que a data e o cenário casualmente reconstituído recordaram cruciantemente. Parece que foi um parto fácil, e que ninguém previu que eu saísse poeta. Mas saí. E começaram então as dificuldades. Tentado pelas promessas da imaginação, muito embora a timidez objetasse, e empurrado pelas circunstâncias, a que durante muito tempo chamei destino, saltei o risco da freguesia, larguei vela ao desconhecido, e, quando fui a dar conta, estava enredado num matagal de hábitos e contradições de onde nunca mais consegui sair.

Diário X
20 setembro 1968

De todos os mitos de que tenho notícia, é o de Anteu o que mais admiro e o que mais vezes ponho à prova, sem me esquecer, evidentemente, de reduzir o tamanho do gigante à escala humana, e o corpo divino da Terra olímpica ao chão natural de Trás-os-Montes. E não há dúvida de que os resultados obtidos confirmam a sua veracidade. Sempre que, prestes a sucumbir ao morbo do desalento, toco uma destas fragas, todas as energias perdidas começam de novo a correr-me nas veias. É como se recebesse instantaneamente uma transfusão de seiva. (…)

Diário XI
12 julho 1969

Sempre que venho por aí acima, começo a avistar o Marão e o Doiro, e me ponho a pensar na morte, o que mais me entristece é não poder deixar em testamento os olhos à filha.

Diário XI

1970

4 setembro 1975

O dia inteiro na cama a curtir uma gripe real. A vida da aldeia chega-me ao quarto através de ruídos familiares a que imediatamente dou significação verdadeira. O relinchar do cavalo do Zé Ferreiro a reconhecer-lhe da loja os passos na calçada, o carro de bois do Roberto a chiar carregado de lenha, os tamancos da Gomes a choutar na eira. A pressa de um diz-me se anda a regar na veiga, se a trovoada ronda, se há incêndio. O sino a tocar, se é missa, enterro ou novena. E todo eu sou uma comovida comunhão com a trama das vidas que me envolvem. Mesmo assim emparedado e a fumegar de febre, a discorrer ou a delirar, já não sei bem, vejo-me mais uma vez possuído pela revelação da minha unidade. A unidade de um homem que o destino tentou desgarrar de todas as maneiras, mas a quem basta sentir os sinais deste chão primordial para se reencontrar firme e certo na fundura das raízes e naturalmente integrado no jogo harmonioso das múltiplas conexões da existência gregária.

Diário XII
25 dezembro 1976

A velha escola do senhor Botelho finalmente reconstruída e atualizada. Mais sol, mais higiene, menos gramática e menos palmatoadas. Mas faltavam no terreiro à volta as mimosas da minha meninice. E passei a tarde de ferro e pá na mão a plantá-las. Não estarei cá para as ver crescidas como as de outrora. Deixá-lo. O meu propósito não era reflorir o passado, mas florir o futuro.

Diário XII
24 dezembro 1977

A braços com os meus fantasmas, que nunca deixam de estar presentes nesta data, vou atiçando o lume na lareira. É meu Pai, é minha Mãe, é meu Avô… Estão sentados a meu lado, calados, num recolhimento letal. Vieram porque eu vim, e como há muito me disseram tudo o que tinham a dizer, fazem-me apenas companhia. É uma consoada suplementar, consecutiva à outra, mas silenciosa e abstinente, de que não compartilha o resto da família, que já dorme. A noite é comprida, e nenhum de nós tem pressa. E vamos deixando correr as horas sacrais, à espera da luz da manhã. Nela, eles regressarão discretamente ao mundo tranquilo dos mortos e eu acordarei estremunhado no mundo inquietante dos vivos. Até que outro Natal nos junte de novo, ainda aqui, unidos pela minha memória, ou lá onde os imagino lembrados de mim no eterno esquecimento.

Diário XIII
11 abril 1979

A casa vasculhada por uma objetiva cinematográfica. Custou-me os olhos da cara consentir na devassa, mas a tenacidade paciente do realizador e um estranho sentimento de fim próximo venceram os meus escrúpulos. Pois que fique escancarada pela imagem a intimidade de um homem que se rodeou de símbolos íntimos: a balança de meu Pai, a roca de minha Mãe, uma bandeira das almas, um calvário de pedra, um Juízo Final de barro, um almofariz, um búzio… Poderá ser que um leitor futuro assim se aproxime mais simpaticamente da minha memória, perante a realidade que apenas lhe mostrei por escrito.

Diário XIII
15 setembro 1979

A casa nativa. O retiro sagrado da memória. A eternidade paralisada

Diário XIII

1980

7 junho 1980

A casa nativa, cerejas maduras, ninhos, flores… Mas não consigo encontrar-me nesta paz matricial e bucólica. É na aflição do dia de amanhã que já estou a viver hoje.

Diário XIII
17 setembro 1980

Ao alargar-me os horizontes do mundo, com necessidades de toda a ordem a que já não posso renunciar, a vida fez de mim um ser ubíquo. Tenho aqui as raízes de suporte e lá longe as pastadeiras…

Diário XIII
8 outubro 1980

Homem de muitas letras, não sei se suspeitoso de que a flagrância do natural fique sempre aquém da literatura que o reflete, quis ver para crer. E veio de Paris passear a suspicácia cartesiana nesta realidade agreste que pintei nos livros e agora lhe escancarei sem a mediação das palavras. Creio que regressa rendido e que leva que contar. A serra, de tão celta, parecia enfeitiçada; o Doiro, pasmado aos pés de S. Leonardo, era um espelho de eternidade; e o roncão que bebeu nunca mais lhe vai sair do paladar. Nisso, ninguém me bate. Quando aqui recebo alguém, sou um anfitrião de êxito seguro. Graças aos recursos em que este chão é pródigo, os meus hóspedes partem duplamente obsequiados. Fascino-lhes os sentidos e embriago-lhes a memória.

Diário XIII
5 setembro 1982

A casa paterna. A matriz sagrada da família. Mas começo a não ter palavras para a emoção que sinto quando entro nela. Engulo-as todas.

Diário XIV
20 setembro 1982

Sempre que venho, mal entro na terra, tenho a impressão de que mudo por dentro. Esqueço repentinamente quanto aprendi desde que fui obrigado a correr mundo, e relembro ao mesmo tempo tudo o que sabia antes. É como se o mais autêntico de mim estivesse aqui à espera de mim.

Diário XIV
31 março 1985

Visita de Camilo José Cela, que veio a Portugal receber um prémio. No meu fervor ibérico, não sei até que ponto sou frequentemente levado investir cada espanhol singular que conheço de toda a castiça grandeza de Espanha. O que muitas vezes não deixará de desconcertar os contemplados. Se calhar, foi o que hoje aconteceu.

Diário XIV
6 abril 1985

Surdina
Não há musas aqui.
Há sombras tutelares
A que vivo obrigado
E devotado,
E me inspiram também.
Mas tão contidamente
Que o meu canto
É sempre como um salmo murmurado
Num altar.
Assim breve e embargado
Para não perturbar
No presente o silêncio do passado.

Diário XIV
15 setembro 1987

Tantas páginas e tantos poemas que aqui tenho escrito, e morro na convicção de que nada disse de significativo da minha ligação à terra onde nasci e de onde verdadeiramente nunca saí. Tudo o que fui lá longe, apenas serviu para me afundar mais as raízes. (…)

Diário XV
19 dezembro 1987

Atafulho de fugida a mala do carro. Batatas, maçãs, nozes, ovos, perdizes e alheiras. Mas deixo de fora a melancolia esparsa de um Natal - já manifesto no semblante cordial de todos e no próprio cariz solene e regelado do tempo - que não seguirá comigo e ficará a doer-me na alma como um remorso, pois só aqui o sei celebrar. Fechada, a casa é como que um não ao passado. Os mortos, dentro dela, não terão lareira, nem memória.

Diário XV
3 abril 1988

Despeço-me da casa paterna, do jardim, do negrilho e das fragas. Das únicas riquezas que gostei verdadeiramente de possuir no mundo, e de que sou avaro. Que não tive de ganhar, mas de merecer.

Diário XV
23 março 1989

A tarde inteira a galgar à sobreposse, certamente pela última vez, os montes familiares sobranceiros ao Doiro, e a receber nos olhos comungantes cada imagem esplendorosa como um sacramento.

Diário XV
9 setembro 1989

Vou e venho. Perco-me por lá e encontro-me aqui.

Diário XV
11 setembro 1989

Os mitos são verdades eternas. Quando aqui chego, é sempre um Anteu combalido que me sinto, a tocar a terra alentadora e a recuperar forças. Não as do corpo, mas as da alma. É um gosto súbito de estar no mundo, uma alegria íntima e sadia do espírito, como se me fossem dadas de repente razões de vida que não tenho lá longe. Sei que é neste chão que hei-de ser enterrado. Mas nem essa certeza me abranda a exaltação. No diálogo com os meus antepassados, que nele jazem e ressuscito a cada momento, a própria obsessão da morte que trago comigo se transforma num inexprimível sentimento de perenidade.

Diário XV
12 setembro 1989

(…) Nascemos num sítio. E ficamos pela vida fora a ver o mundo do fragão que primeiro nos serviu de mirante.

Diário XV

1990

30 abril 1990

(…) Desde há muito que sei que sou o usufrutuário de uma herança sagrada, que só merecerei se nunca me esquecer que S. Martinho é um berço onde tenho de nascer todas as horas e morrer, um dia.

Diário XVI
8 setembro 1992

Mesmo a cair aos bocados, teimei em passar por aqui. É que nenhuma hora da minha vida tem significação sem esta referência. S. Martinho é um marco de orientação e segurança que vejo em todas as horas de perplexidade e angústia e de todos os quadrantes do mundo.

Diário XVI
9 setembro 1990

Entro na casa paterna no sonambulismo de sempre. Desde que a deixei pela primeira vez, que nunca mais lhe transpus os umbrais inteiramente senhor de mim. (…) O destino exagerou comigo. Baralhou-me a condição. Plantou-me aqui e arrancou-me daqui. E nunca mais as raízes me seguraram bem em nenhuma terra.

Diário XVI